“Você
é uma esfinge!”, disse a ela, tamanho era seu
mistério. E não, eu não falo isso para qualquer um: uma das minhas habilidades
é ler o outro, mesmo quando este dissimula. Podem me chamar de convencido, eu entendo. Mas nada passa incólume a mim.
Quer
dizer...
Vez ou outra, aparece alguém que buga meu
sistema. Ela era dessas. E, não havia outra definição que pudesse defini-la
melhor: um enigma nunca antes desvendado, tal como a esfinge de Édipo.
Do
outro lado, ela recebia a afirmação com o misto de surpresa e curiosidade.
Talvez nunca se visse como uma, afinal, esfinge é um mistério da mais alta
classe, posição na qual ela nunca se colocaria. Ou, talvez, surpresa pois não
esperava que já houvesse nascido ainda alguém que se interessasse em desvendá-la.
Ela era o maior desafio para terapeutas, para si mesmo e, sobretudo para mim.
Longe
daqui que ela fosse a pessoa mais complicada do mundo, esse encargo fica para
mim. Também não era a pessoa com menos problemas do que as outras, embora
tivesse seus dramas. Não tinha um gênio indomável, tampouco era fria como o
Ártico. Não pecava pelos excessos, pelo contrário: sua fala é mansa, suave, um
canto de sereia que nos leva a descobrir, do nada,um tsunami. Por trás dos seus
olhos serenos e seu sorriso de canto de boca doce que aquieta animais selvagens,
podemos, ao mesmo tempo, encontrar terremotos, maremotos e chuvas torrenciais.
Ou podia ser nada disso: ela não tinha aquele padrão que conseguimos ler nas
pessoas medianas. Literalmente, é um chocolate mais doce com pimenta mais forte.
Talvez
ela possuísse uma imagem parcial, incompleta, de si mesma e se assustava sempre
que os seus outros lados, como aquele mais obscuro e o mais impulsivo,
apareciam. E eles sempre aparecem, pois a natureza sempre põe à tona aquilo que
tentamos esconder de nós mesmo, não importa como. E como ninguém gosta de viver
de sobressaltos (quer dizer, quase ninguém), ela se protege a sua maneira: uns
diziam que ela se fecha tal uma concha, outros diziam que ela coloca dezenas,
centenas e milhares de camadas a sua
volta, assim como uma cebola.
Todos
nós temos diversos “lados”, facetas. Não seria exclusividade só dela. Todavia,
há formas e formas de revelá-los. Alguns simplesmente deixam essas facetas
fluírem naturalmente, sem controle prévio ou censura. Impulsivos, por mais
organizados que sejam cada minuto é uma grande surpresa pra eles: não se sabe
como irão reagir a um gesto, uma palavra, um olhar do outro ou de si mesmo.
Outros, por sua vez, controlam cada passo que irão dar: está tudo arquitetado,
evitam o improviso que a impulsividade obriga a ter. É ser reservada na boa
parte das vezes. Mas como a natureza sempre põe à tona aquilo que tentamos
conter, sempre que se há um lapso e ela se escapole de sua concha, sempre que
percebe que a cebola sendo descascada muito rápida ou profundamente,parece que
ela se fecha cada vez mais, seja em uma concha mais resistente, seja em uma cebola
com mais camada.
Mas
não seria o fluxo da vida abundante demais para se passar por um eterno e
rigoroso controle? Tentar viver em um casulo é como controlar um vazamento com
chiclete: uma hora não vai segurar mais, vai arrebentar. E a vida pode ficar
tão mais divertida, tão mais colorida quando deixamos a impulsividade aparecer
em nossas vidas: quando falamos aquilo que queremos falar, que digamos bobagem,
quando agimos passionalmente mesmo que depois fiquemos vermelhos de vergonha do
que fizemos. Que nos apaixonemos e desapaixonemos. Quando agimos antes de
pensar, quando não pensamos nas consequências. Enfim, não é ser irresponsável,
é ser humano, é ter vida um pouco mais colorida.
Talvez
por trás daqueles olhos que nos fazem sorrir, ela também tenha um quê de
impulsividade, de sair do controle, de se permitir. Talvez eles escondam um
coração machucado, que, assim como um animal ferido não mortalmente, se
entranha na caverna e fica lambendo a ferida até sarar, afastando-se quando
alguém da matilha vem prestar ajuda, pois não se acha digno do mesmo.
Só
aqueles olhos calmos que escondem uma grande ressaca do mar seriam tão mais fascinantes
se permitissem que fossem engolidos por suas gigantes ondas. Que aquela fala
carinhosa que acalma o seu ouvinte também se permitisse queimá-lo com as lavas
do seu Vulcão. Que a mão que acalenta se permitisse colocá-lo no meio de um
terremoto. Mas para ela pode ser que seja mais forte que ela desviar-se do assunto
quando ele vai entrar em uma área onde ela não tem total controle. Ou que é
mais forte que ela desconfiar de alguém que apenas quer conhecê-la, pois não
existe amizade sem conhecimento do outro. Talvez, para ela, perceber que no
meio de uma conversa, o outro está perto de si mesma, em uma área
perigosíssima, a do seu eu desprotegido, ambíguo, sem máscaras, é tão
assustador que a faz usar qualquer arma para despistar, fugindo logo em
seguida. Talvez, quando ela sai da conversa, foge não por ser covarde, mas
porque não se sente confortável para se abrir para o outro. Mas como se sentir
confortável quando não se abre espaço? Embora sempre risonha, fazê-la sorrir
aquele sorriso verdadeiro, de dentro pra fora, aquele que mostra a janela
secreta da alma, seja para mim a vitória do dia.
Apesar
de tudo, é justamente nesse ser contido que se guarda um charme, algo que atrai
as pessoas a quererem conhecê-la melhor. Arrasta-nos para uma grande areia
movediça, prendendo ali eternamente sem nunca ter certeza completa de que a
realmente conhece. Talvez este seja o segredo dessa esfinge pós-moderna:
descobrir uma senha que nos livre dessa incontrolável compulsão em desvendá-la
ou que a faça sair de sua concha ultrarresistente. Esse ar misterioso, reservado, pode ser
justamente uma escolha dela, que permitirá a apenas a alguns privilegiados, que
possuindo a resposta do seu enigma, tenha as chaves de seu coração. Que por
trás daquela fachada quieta e serena, existia uma intensidade louca em seu
viver. Ou será que sua intensidade esta circunscrita as suas loucuras secretas?
Daria pra viver certas loucuras de vez em quando sem necessariamente romper as
barreiras do seu casulo? Enquanto isso não acontece, poderia ela estar
se deliciando em devorar meros mortais extremamente curiosos em
desvendá-la, bagunçando suas cabeças metidas a analistas freudianos, como eu?
Do
outro lado,longe, ela se aquieta depois da minha afirmação inicial. Sequer se despede. Afinal, para que ser cordial para um intruso que ousa entrar no seu palácio?
Mas posso
escutar o seu contido riso travesso quebrando o silencio de seu quarto.