É divertido, como um jogo de xadrez humano. Provavelmente mais um hiperfoco, e dificilmente nada passa incólume a mim.
Bem, quer dizer... Até ela aparecer.
Vez ou nunca, alguns surgem e bugam meu sistema, trazendo a sensação que desaprendi a jogar xadrez humano. E ela não me faz achar que desaprendi, mas sim que eu sou uma fraude, que nunca soube ler alguém. Ela é mais poderosa dessas. A mais foda.
E não havia outra definição que pudesse defini-la melhor: um enigma nunca antes desvendado, só que atualizado — em vez do corpo, tinha alma de leão. E o mais belo dos rostos. Enfim, minha esfinge. E como todo desafio, eu fui pro embate: decifrar ou ser devorado. Enquanto ela brincava com canudo enquanto bebia meu café gelado.
Minha mente imagina um grande tabuleiro e avanço minhas peças, analiso seus olhos, cujas pupilas parecem bolas de gude — redondas, lisas, dilatadas para caber a imensidão do mundo.
A princípio, achando que seria partida fácil, reparo que entre brincadeiras com o canudo e paladar infantil, havia encontrado um misto de surpresa e curiosidade com minha expressão.. Será que ela pensava que dizer que era uma esfinge, minha esfinge, era só mais uma das inúmeras cantadas "cult" de um nerd de história hábil com as palavras? Ou uma fala rebuscada para elevar a autoestima dela?
Antes de concluir a jogada, recuo. Não tenho autoestima para supor o absurdo de que uma esfinge perfeita teria problemas de autoestima? Esquece! Mudo a tática e em vez de atacar, me coloco em defesa, sem sucesso. 15 segundos depois, ela já tinha destruído minha defesa no tabuleiro e na minha vida. A partida mal começou e sinto-me duplamente vulnerável.
Tento uma nova abordagem. E aí vai o raciocínio: será que ela nunca se viu como um desses seres mitológicos? Talvez ninguém tenha dito a ela o mistério de alta classe que é. Será que ela sabe que sabe hipnotizar suas vítimas, inocentes (ou ousados demais), as quais estão imersas, afogando-se ao contemplar seus olhos dentro dos seus olhos? E eu conseguiria mergulhar por décadas sem decifrá-los completamente , tão abundantes e onde se vê tanta esperança em meio a tanta dor. Tanta generosidade, em meio a tanto trauma, tanto otimismo, em meio a tanto sofrimento.
Ou as que estão abandonadas no deserto, sem beber ou comer, verdadeiras estátuas de sala, só esperando aquele sorriso. Esse maldito sorriso que não chega a ter uma covinha — porém, no qual a pele repuxa no cantinho da boca que só vem quando está provocando?
Desconfio, na minha arrogância, que a sabe. Ah, ela sabe. Ainda mais depois do caso, muito estudado, na qual ela enviou uma foto perfeita dela... Pela metade! Apenas metade de seu cabelo de fogo, parte dos seus olhos e um cadinho daquele malicioso sorriso. Os artigos sobre caso, informam dizem que a vítima não foi capaz de decifrar, foi devorada e agora jaz paralisada na cama, sem responder a nenhum estímulo além de fixar olhando aquela imagem, tentando completá-la. Nem aos miados de seus três gatos carentes, ele responde, com olhar bobo e torto. Especialistas concluem a impossibilidade do jovem inocente nunca mais voltar à normalidade. Então, ela deve saber, ela tem consciência da imagem-viva na qual ela é.
Entretanto, vejo-me em dúvidas se ela se colocaria nessa posição de devoradora de almas. Para variar, divago e o tempo se esgota, e perco outra jogada.
Já a esfinge, com leveza, vai minando e eliminado, elegantemente, minhas melhores peças. Nem disfarça o prazer de ver meu desespero. A sensação que estou jogando contra um grão-mestre super gênio e sou uma criança de 3 anos. O Bispo já foi pro espaço. Estranho é o fato que ver sua risada não me afronta, me satisfaz. Como se eu quisesse perder para escutar sua risada. Sou competitivo, não pode ser assim.
Quase sem defesa, avanço as últimas peças que me restam, enquanro você me olha como se Capitu tivesse acabado de ser personificada de Dom Casmurro na minha frente, e eu me deparo com esses olhos de cigana, oblíquo e dissimulada.
Será que ela está levemente surpresa por existir alguém tão interessado em desvendá-la? Alguém que não está ali só para resolver o enigma e gritar "eu venci", mas que quer ficar por perto, ser seu parceiro nessa jornada? Afinal, essa vida de "decifra-me ou devoro" é solitária. Se te decifram (e talvez já), vão embora sem reconhecer a importância de uma esfinge na vida dessas pessoas. Se devoras, não sobra ninguém para conversar ou te abraçar sem julgamentos. Esfinges também têm suas questões.
Outro desafio seja entender minha própria postura. Um enigma maior para os terapeutas, para ela e, sobretudo, para mim. Eu sei que serei devorado, faz parte da natureza. Sou eu, sapo, dando carona para um escorpião para atravessar o rio. Por mais grato que o escorpião possa ser, ela vai enfiar seu ferrão no sapo, é a natureza.
E é tão certa como a luz do fogo que estou caminhando no alto de um precipício, sabendo que vou cair — igual ao Coyote do Papa-Léguas segurando uma bomba Acme. A diferença é que caminho sorrindo, acenando e dizendo: "Eu sei para onde estou indo, vai ficar tudo bem". E, como o Coyote, espatifo-me inteiramente. Não uma, nem duas. E assim como o Coyote, na próxima cena, estou de volta, inteiro, deixando meu Frapuccino ser surrupiado.
Fecho os olhos e faço a jogada. E ela, tão rápida em seu contra-ataques, titubeia, abaixa a cabeça, sorri sem graça. Ela não tem uma resposta imediata, não sabe reagir, parece que entrou em terreno desconhecido. A esfinge que enfrento é astuta e difícil, mas ruim em blefar. Mente tão mal quanto uma criança de 5 anos que não comeu danoninho com a boca coberta do produto. Seus olhos, agora reticentes, dizem que, pelo menos, um cavalo eu tirarei do seu tabuleiro.
O jogo virou, né? (Spoiler? Nem um pouco)
Há algo comum entre o homem que não quer apenas decifrar o enigma e a dona do enigma: somos complicados. Antes de ser uma esfinge, era foi uma ave indefesa que, diante das demandas da vida, precisou se reinventar para sobreviver. Eu, por minha vez, desisti da ideia de jogar pro universo esperando por reciprocidade. Nada mais verdadeiro que em chuva de xuxa, no meu colo cai o Tiririca. Se é difícil ser eu, não se compara a dificuldade da esfinge-fênix ser ela própria, sem mascaras. A cada dia tentando decifrar o desafio, mais a conheço. E quanto mais a conheço, menos sei sobre ela.
Contudo já me encontro em um ponto de não retorno: eu já rompi com o mundo e queimei meus navios. Tal qual Hernán Cortés, que, em 1519, mandou queimar os navios para que seus soldados, assim como eu, não pudessem recuar, nao é fácil.
Lógico que serei elegante de não falar isso para a esfinge. Mas essa conversa está só entre nós dois, né leitor?
Diferente das outras de sua espécie, não tem um gênio indomável nem é fria como o Ártico. É abundante em doçura. Gargalha ao me ver suando para decifrá-la, mas também me diz para não desistir. Ao contrário dos outros, estou a semanas aqui, não fui devorado e só diz "continue, está bom". Sadismo? Não sei, mas aqui estou.
Por trás dos suas pupilas de balebas— e do sorriso que me quebra, há algo nela capaz de aquietar os animais selvagens. Contudo, é esse mesmo mesmo combo que me lança em terremotos, maremotos e chuvas torrenciais. E nem sempre nessas horas ela está presente com um guarda-chuva. Enquanto me fico todo empapuçado, ela, sabendo que nada seria resolvido, foi descansar, sem avisar. Doce? Muito. Ela é quase uma versão limitadíssima de da melhor bala Fini. Só junto com a doçura vem uma pimenta das mais ardidas.
E nessa hora, volto a olhar para o tabuleiro. Ela já se recuperou e eu deixei escapar uma duas jogadas. Contudo, tenho andado diferente: a jornada está divertida, não preciso provar nada para ninguém. Estou me levando menos a sério, deixando fluir e parece ser mais gostoso que a vitória em si. Minha teimosia, no entanto, não irá deixar eu abandonar o jogo, por mais que não faça muito mais sentido e o xeque-mate por parte dela é uma questão só de quando, não de se.
Talvez ela tenha uma imagem parcial de si mesma e se assuste quando seus outros lados — o obscuro, o impulsivo — aparecem. E eles sempre aparecem, porque a natureza expõe o que tentamos esconder. Acostumada a viver na adrenalina, ela se protege: ora se fecha como uma concha, ora se envolve em camadas de cebola. Ora foge de tudo e todos, esperando eu concluir minha jogada. E, já esqueci desse jogo só penso se ela me deixa entrar na concha para cuidar dela.
A vejo com um sorriso manso, lábios desenhados à mão beijando fios de cabelo, enquanto se acaricia suavemente, como se auto-regulasse sua ansiedade. Tal qual quando vê a filha distante por chamada de video. E é uma das imagens tão bonitas e charmosas, que só de pensar , perdi minhas peças mais importantes sem perceber. Nessa hora só penso em verbos como cuidar, valorizar, respeitar mimar, fazer bem. Sempre sem pressao, cobranças ou julgamentos. No tempo que vier a ser, na configuração que viera ser. Calmo e tranquilo, mesmo sabendo que minha defesa nessa partida está completamente exposta e vulnerável.
"Leva logo o rei também", penso e imagino que a risada que daria se estivesse falando é não confubulando. Algo que ecoaria mais que qualquer xeque-mate.
Todos temos múltiplas facetas. Não é exclusividade dela. Alguns as deixam fluir naturalmente; outros controlam cada passo. Ela oscila entre os dois. Quando a natureza força suas barreiras, ela se fecha mais — concha mais dura, cebola com mais camadas. Alguns dias eu no deserto sem ver a esfinge e pedir alguma dica para responder o enigma. Nem mesmo a sua companhia.
Divaguei e perdi outra jogada. O xeque veio. Aceito a derrota esperando ser devorado, com coração em desalinho, mãos trêmulas e coração saindo pela boca. Não obstante, gosto de sentir os olhos dela em mim quando desvio o olhar, estou pronto para ser descartado.
A Esfinge me olha com ternura, e com a leveza de uma bailarina pergunta "você quer continuar? Está bom. Só tenho medo de você se machucar". E eu, que segurei meu pranto para transformar canto, para meu espanto suas palavras desfizeram dois nós. O pavor do seu silêncio e a angústia de ter que fingir que não me importo.
E eu vou tentar e tentar, sem desistir nem nem de tentar, nem de esperar. Não mais pela arrogância inicial na qual eu estufo o peito e digo "eu sei ler todo mundo". Mas sim que, por não desistir, esperar, me espatifar, essa brincadeira de tentativa e erro, eu me vejo tornando um homem melhor. Sonho agora.
em cores, sonho em vermelho.
Se vou conseguir matar a charada, é outra história. Se, ao desvelar o enigma, terei benefícios, é outra história. Vivo o hoje, tentando controlar a ansiedade.
O fluxo da vida é grande demais para caber em controle. Viver num casulo é como tampar vazamento com chiclete: uma hora vai dar merda. A vida fica mais colorida quando permitimos a impulsividade — falar o que queremos, agir antes de pensar, apaixonar-se e desapaixonar-se. Não é irresponsabilidade; é humanidade.
O ser mitológico e seu devorado/sudito são mais parecidos que imaginam. E não acredito em coincidências. Eu acredito que se há algum tipo de Deus, não estaria em nenhum de nós, nem em você nem em mim, mas apenas neste pequeno espaço entre nós. Se há algum tipo de mágica neste mundo, deve estar na tentativa de entender alguém compartilhando algo. Eu sei, é quase impossível ter sucesso, mas quem se importa realmente? A resposta deve estar na tentativa.
Ainda assim, é nesse ser que mora um charme que atrai. Um super ímã de neodímio, o mais forte dos imãs, o qual me arrasta e me faz estar colado a ela, mesmo em situações onde minha obrigação é dizer que não estou diante de nenhuma esfinge.
Só que agora, depois de algumas tentativas sem sucesso, eu nao quero só desvendar seu mistério, mas também quero entender como ele brilha. Por trás da fachada de esfinge, há cicatrizes de abalos cismicos, nas quais quero apenas cuidar, estancar o sangue, beijar as cicatrizes.
E talvez essa seja a resposta do seu enigma. Não és nenhuma deusa, nenhum ser mitologico. Apenas humana. Ela não é um jogo, nem uma grande charada, nem o mais difícil dos quebra-cabeças. Ela é um universo em expansão.
A vestimenta de esfinge é apenas mais uma proteção para não se deixar se machucar outra vez. Se tinha medo de ser mais um na fila dos devorados, hoje alivia-me ter perdido o medo de nunca ter tentado. Afinal, tudo o que fazemos na vida não é uma forma de sermos um pouco mais amados?
Olho para frente, e ela está na minha frente, sempre esteve. O tabuleiro foi embora, assim minha incapacidade de olhar diretamente para alguém. E ela ainda está la, brincando com canudo enquanto ela saboreia o restrinjo do meu Frapuccino. Ou melhor: o café gelado em no copo de milk-shake sempre foi dela. Resigno-me à coquinha zero e ao tempo. Porque algumas esfinges não são para resolver, mas para caminhar ao lado — mesmo que a gente tropece nas próprias metáforas. Lembro-me de quanto ela me faz bem, esqueci da partida e, por hoje, só queria vê-la sorrir. O resto o passar do tempo e a paciência se encarregam.
Mas gostaria de ser uma mosquinha para ouvir sua risada marota quando desembarquei de seu carro. Atordoado. Sem café gelado. Com o sabor de canela ainda dos seus lábios e o tabuleiro desfeito. E um sorriso que me carregou em direção a uma das minhas melhores aulas da vida. Um riso que não é vitória, nem derrota. Só a promessa de que em muito em breve haverá mais uma partida.
Por pura e total diversão.
Só que dessa vez, só para garantir, vou pedir dois Frapuccinos.
Só que dessa vez, só para garantir, vou pedir dois Frapuccinos.
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