sábado, dezembro 01, 2012

Morte e Ressureição

Sessenta segundos. Ninguém me obrigou a estar ali. As pernas bambas, o coração descompassado e a plena certeza que ali, naquela raia 1, eu tenho a solidão do mundo em minhas pernas. Dezenas  de pessoas correm juntas e aleatórias naquelas sete raias, mas estão todos sozinhos, a deus-dará de seus objetivos e planos. E quem sou eu, alem de mais um naquele vácuo de passos, suores e bufadas, olhando fixamente para aquele relógio em contagem regressiva, que se apressava para terminar aqueles sessenta segundos.

Cinqüenta segundos.  A volta a calma não é mais a mesma que na primeira vez; o sorriso não é o mesmo que dos primeiros minutos, onde, a passos leves e suaves, os músculos começavam a aquecer. Nem mesma é a  felicidade, naqueles, agora, quarenta segundos, de estar de volta aquele piso avermelhado, que  merece respeito a toda liturgia que a envolve, desde o tênis correto, até os exercícios, que, por mais mais placebo que possam ser para os fisiologistas, funcionam como um momento de concentração para que viria a seguir. Os estímulos eram ousados, e qualquer erro de inicial, por entusiasmo ou arrogância, custariam caro. Maior ousadia, maior responsabilidade. Eles tinham que ser feitos, a qualquer custo, e só eu podia resolver isso. E a experiência já tinha me mostrado, a muita dor, que a brincadeira só começaria a partir da metade, quando aquele maldito acido faria uma visitar a cada músculo de meu corpo.

Trinta segundos. A respiração, outrora já normalizada, continua ofegante, e o corpo, apesar daqueles goles gelados e do resto da água da garrafinha na nuca, permanece em plena ebulição. Os pingos de suor  repintam a pista enquanto o cabeça entra em negociação para que eu pare o relógio. Ninguém está me vigiando, ninguém me censuraria, quiçá, saberia. O corpo agradeceria, e como recompensa, me daria sobrevida  para o derradeiro e melhor estimulo. Que se foda o "No pain, no Gain", não há motivo para me maltratar assim. Só que não consigo, simplesmente não consigo: o relógio continua em sua rápida contagem regressiva já chegando ao vinte segundos e tudo que consigo pensar é que preciso fazer isso. Não penso em fazer pelos meus amigos, pelo treinador, por uma superação emergente e clichê da minha condição humana. Nesse momento sinto-me uma máquina: não há motivações, me despojo de toda sentimentalidade. Eu simplesmente tenho que fazer.

Dez segundos. Um Ultimo gole numa garrafa vazia, ultima tomada de fôlego, ultimo pensamento: "só duas voltas". Visualizo o corpo saindo da inércia,inclinando-se, acelerando na primeira curva, ansiando, naqueles primeiros vinte segundos para ver se o ritmo está adequado. A biomecanica impede que se fique olhando muito para o relógio: braços como âncoras, ditando o ritmo que as passadas curtas e mais freqüentes, a 180 bpm, tentam  acompanhar. Após a primeira volta, o pulmão parece uma bexiga vazia sem a remota possibilidade de encher. A panturrilha lateja, o medo de que ela viesse explodir só não é maior que o medo de não terminar. Não há endorfina no caminho, não há prazer, só a sensação de plenitude e dor. Na ultima curva, olhada no relógio e tudo em ordem.  Em êxtase e dilacerado, aumento a freqüência das passadas, os braços aceleram, o peito estufa, a visão turva: não vejo nada, ninguém, todo o cenário ao me redor se transforma em um grande borrão durante longos e intermináveis dezenove segundos...

 O êxtase enfim chega, em doses cavalares, e sorriso disputa espaço com a necessidade de buscar mais oxigênio e a vontade imensa de gritar, extravasar a felicidade e a dor do ato. Novamente naquela manhã, morri e ressuscitei. Quem disse que seria fácil? Quem disse que seria indolor? Quem disse que não ofegarias? Quem disse que não conseguiria realizar? As pernas estão bambas, caminho torto, mas estou pleno. Sinto-me Deus, sinto-me Lúcifer, sinto que asas brotaram em meus tornozelos e, agora sou Mercúrio.

Não tenho muito tempo para vãs divagações ou mesmo voltar a calma na respiração: olho o relógio e ele, inexoravelmente, me mostra que falta menos de sessenta segundos para o próximo...