terça-feira, setembro 01, 2009

Polaroids (ou "e quando o pássaro não volta?)

Seis da manhã.

Eu, atrasado, entro no primeiro vagão de um trem rumo a Paciência. Seria uma segunda normal se não fosse pelo fato deste vagão estar vazio. Completamente vazio não: havia, além de mim, um casal. Minha distração de olhar a paisagem do subúrbio sob a luz do nascer do sol e os ouvidos surdos pelos fones do MP3 (hoje era Chico Buarque, pra variar) me fazem esquecer aquele casal a minha frente...

“... Quando você me deixou, meu bem me disse pra ser feliz e passar bem...” (Chico Buarque)

Como um capricho dos deuses, cantarolava essa frase quando o trem parou na estação de Cascadura. Com o parar do trem, abrem-se as portas do vagão e com elas o homem sai, despretensiosamente. E no exato momento que as portas se fecharam, eis que a moça se torna em um grande manancial de lágrimas: grossas, quentes, tristes. Não há escândalo de sua parte, não há desespero, tampouco teatralizações. Há discrição de ambas as partes: da dela, para não mostrar seu rosto encharcado e de maquiagem borrada; da minha, para que ela não percebesse que eu ali a observava e, de certo modo, compartilhava da dor dela e tentava penetrar em seus pensamentos. Pus-me a escrever ali mesmo, misturando dor, reflexão e músicas em uma linha tão difícil de dissociar.

"O que é que eu posso contra o encanto/ Desse amor que eu nego tanto/ Evito tanto/ E que, no entanto/ Volta sempre a enfeitiçar"

Mesmo na impossibilidade de entrar em seus possíveis devaneios (o dom sobrenatural que tanto almejo), me vi como que abrindo um detestável álbum de fotografias mentais. E nesses flashes, página após páginas, via juras de amor, beijos apaixonados, risos ao luar, cochichos ao pé do ouvido, a calma das mãos entrelaçadas, a sensação de completude, o da “pra sempre”, o suspiro de quem percebe que o pensamento foi invadido pela imagem do amado. E, como num loop de uma montanha russa, as imagens se transformam e as imagens mostram a angustia da solidão, os pés andando em caminhos contrários, o nada, o vazio, o vagão do trem vazio, a imagem daquela moça que, agora, coloca os óculos escuros para disfarçar sua tristeza.

"... O que me dá raiva são as flores e os dias de Sol/São os seus beijos e o que eu tinha sonhado pra nós..." (Leoni)

O castigo daqueles que se atrevem amar é terem que lembrar tortuosamente dos melhores momentos do relacionamento quando ele termina. Tal como Prometeu, que, acorrentado no Monte Cáucaso, tinha a companhia apenas de Abutre que lhe comia fígado diariamente como castigo pela ousadia de pegar o fogo sagrado de Zeus, temos nossos corações devorados pela ousadia de pegar o Amor, o fogo sagrado de Deus. Tortura-nos, de maneira igual, lembrar daquilo que não vivemos, mas que poderíamos viver. Planos, futuros, viagens, aquilo que deixamos de viver, abdicamos voluntariamente acreditando que, no fim, valerá à pena. Mas nem sempre vale...

"(...) Ah, se já perdemos a noção da hora/ Se juntos já jogamos tudo fora/ Me conta agora como hei de partir (...)"

Uma das histórias que mais marcou quando menino era aquela que o mestre, para mostrar ao discípulo que não devemos a nos apegar a nada que não é nosso, ordena que se solte da gaiola o seu melhor pássaro, o mais querido. Incrédulo, o discípulo, ao ver pássaro sair pela janela, pergunta qual a razão dessa atitude tão radical. E o mestre, na sua habitual e irritante calma, profere a célebre frase: “Se ele for realmente meu, ele irá voltar”. Esta fábula se encaixa perfeitamente nos nossos relacionamentos. Se realmente devemos libertar o outro, por qual razão não o fazemos? Ou não o soltamos com medo dele não ser nosso e nunca mais voltar, ou o soltamos, mas sempre com a convicção de regresso.

Mas... e se o pássaro não voltar? O que fazemos?

"(...) Não ter você/ cair em si/ Morrer de amor não é o fim, mas me acaba (...)" (Djavan)

Como suportar a dilacerante dor que é o fim do amor? Ele pode até não matar, mas nos acaba. O que fazer com aquele espaço enorme que fica quando o outro se vai? O que fazemos para tirar da boca o amargo gosto da frustração?Como tirar da cabeça os bons momentos que nos perturbam e deixam a sensação do “poderia ter dado certo se...”? Por que não podemos lembrar somente das brigas, discussões, defeitos, do que nos incomodava? Por que não sentir o refrescante ar da liberdade e da possibilidade de amar de novo, sem os erros de antes, só que agora mais e melhor? Por que não, numa postura de extrema maturidade (ou de frieza), entender que todos os relacionamentos são pontes para a busca do inatingível “perfeito amor”?

Enfim, por que não entender que, se o pássaro não volta, é porque nunca foi nosso?

"(...) E quando eu me apaixonei/ Não passou de ilusão/ O seu nome rasguei/ Fiz um samba-canção/ Das mentiras de amor/ Que aprendi com você (...)"

A minha tristeza naquele vagão banhado pelo sol mansinho da manhã não era por mim, era por ela. Não sei seu nome, nem sua história, tampouco se ela foi quem terminou, ou o contrário, ou se é que foi um término. Pela frieza que pareceu, deduzo que sim... Minha tristeza era saber que tudo isso que penso de forma racional e em tons mais leves, ela talvez estivesse passando de forma abrupta, dolorida...

"Oh, pedaço de mim/ Oh, metade adorada de mim/ Lava os olhos meus/ Que a saudade é o pior castigo/ E eu não quero levar comigo/ A mortalha do amor/ Adeus..."

Próxima Estação: Paciência.

Um colega de trabalho interrompe meus devaneios: é hora de desembarcar e viver a vida real. Agradecido me levanto e percebo que a moça não estava mais lá: deve ter soltado em alguma estação que meus devaneios não me permitiram ver. A dor foi junto com ela, mas aquela imagem ficou registrada: tornou-se mais uma Polaroid dos sentimentos humanos que vou guardar em meu álbum...

...que eu teimo em colecionar.